Escrito por Joyce Figueiredo
1 INTRODUÇÃOEste assunto irá
apresentar uma pequena conceituação sobre sexo e gênero para proporcionar
melhor entendimento sobre o direito feminino dentro da história, mostrando as
lutas e dificuldades desse público, num processo que envolve preconceitos e
estereótipos dentro de uma sociedade patriarcal e machista.
Para combater essa situação, diversas ondas e
manifestações ocorreram ao longo do tempo, em busca de igualdade e valorização
do público feminino. No caso específico do Brasil, a cearense Maria da Penha
exerceu um papel essencial para solidificar esses direitos tão menosprezados
por anos, através de sua história de luta e resistência por quase 20 anos.
Sua batalha motivou a promulgação da lei 11.340/2006,
que dispõe sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher,
representando uma conquista sem igual para muitas gerações, com pontos
positivos que colaboraram para a defesa da vítima nessa situação tão complexa.
Porém, a falta de investimento nessa área ainda é um empecilho para por em
prática tudo que a legislação propõe.
Antes de entender sobre o
histórico da Lei Maria da Penha e os direitos conquistados pelas mulheres, é
preciso estabelecer uma diferenciação entre sexo e gênero. O primeiro diz
respeito às diferenciações biológicas do sistema reprodutor, masculino e feminino
e o segundo relaciona-se aos papéis sociais e culturais construídos ao longo do
tempo na sociedade, palco de preconceitos, estereótipos e desigualdade.
Sabe-se que até a
renascença só havia uma concepção de sexo e as mulheres eram consideradas
homens não evoluídos, tanto que seus órgãos nem eram estudados e sua
menstruação era vista como algo negativo. Depois de muito esquecimento acerca
desse gênero, no final do século XIX e início do século XX, surgiu a 1° onda
feminista do movimento trabalhista sufragista, em busca de condições de
trabalho regulamentadas e maiores direitos relacionados ao voto e a
participação política. Já na segunda onda, nas décadas de 60 e 70, foi apontada
a diferenciação de sexo e gênero e foram produzidos estudos sobre a opressão
vivida por mulheres durante anos, com discussões sobre a objetificação,
prostituição, dentre outras normas sociais, extremamente desiguais. Nesse
período houve o surgimento dos anticoncepcionais, diminuindo o tabu da
menstruação e do controle corporal da mulher.
No caso do Brasil, essas
ondas permitiram a conquista do voto feminino e da licença gestante na
Constituição de 1934. Além disso, surgiu, em 1962, o Estatuto da mulher casada
como forma de exterminar sua incapacidade civil, anteriormente ligada ao
poderio masculino. Um exemplo dessa situação ocorria quando um homem impedia
legalmente sua mulher de trabalhar, com o pretexto de atrapalhar a unidade
familiar. No entanto, essas mudanças não foram suficientes para acabar com o
preconceito enraizado na sociedade.
Um exemplo de tamanha
injustiça ocorreu com Maria da Penha Maia Fernandes, nascida em 1945, formada
em bioquímica e Farmácia na Universidade do Ceará, além de mestre em
Parasitologia em Análises Clínicas pela Universidade de SP. De acordo com as
informações da ibiografia, ela se casou em 1976 com Marco Antonio Heredia
Viveros, um colombiano que buscava se restabelecer no Brasil.
No início do casamento
tudo era maravilhoso (como em quase todos os relacionamentos), mas após o
nascimento de suas filhas e a definição de Marco como cidadão brasileiro, tudo
se desmoronou, e a paz familiar transformou – se num palco de agressões
psicológicas e físicas, que atingiram não só Maria, mas suas 03 filhas.
O cúmulo do absurdo
ocorreu em 29 de maio de 1983, quando o colombiano transtornado planejou uma
tentativa de homicídio contra sua esposa, em seu próprio lar, mudando de vez a
vida de Maria da Penha. Com a justificativa de um assalto, Marco simplesmente pegou
sua arma e atirou em sua mulher, deixando-a paraplégica para sempre.
Inicialmente, Maria
acreditou na versão do marido, mas aos poucos ela percebeu que a versão de
crime acidental poderia estar equivocada.
Após 04 meses de internação com cirurgias e diversos procedimentos,
Maria continuou sofrendo agressões de todos os tipos, até o ápice de outra
tentativa de homicídio, quando Marco tentou eletrocutá-la no banho.
Tudo isso gerou muita
indignação até que, conforme informações de Cunha e Pinto, 2007, p. 11-16, em
28 de setembro de 1984, Marco foi denunciado para a iniciação de um processo
que o levaria ao Tribunal do Júri somente em 04 de maio de 1991, com o
resultado de sua condenação. No entanto, com a interposição de recursos,
nenhuma prisão foi efetuada e no dia 15 de março de 1996 um novo julgamento
ocorreu, com a condenação de 10 anos e seis meses de prisão. Mas como no Brasil
há muita lentidão processual, mais um recurso foi feito, levando a efetivação
de sua prisão apenas em 2002, ou seja, 19 anos depois do ocorrido.
Pode-se dizer que o
descaso existia pelo fato do crime doméstico ser tratado com descrédito e
taxado de leve pelo judiciário, logo, quando aconteciam casos dessa categoria,
na maioria das vezes, tudo era resolvido com o pagamento de multas e cestas
básicas, levando em consideração a falta histórica de direitos femininos ao
longo do tempo.
Vale ressaltar que, a
condenação em 2002 só ocorreu graças a luta constante de Maria da Penha no
caso, com a divulgação de seu livro em 1994 “Sobrevivi... posso contar”, além
de várias tentativas de comunicação com organismos internacionais de direitos
humanos. Até que em 2001 a Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o
Brasil por omissão e negligência, de acordo com a conclusão do Relatório n° 54:
[...] a República
Federativa do Brasil é responsável da violação dos direitos às garantias
judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção
Americana em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os
direitos, prevista no artigo 1 7 do referido instrumento pela dilação
injustificada e tramitação negligente deste caso de violência doméstica no
Brasil.
Além disso, foi
recomendada a agilidade dos processos domésticos e uma sensibilização acerca
dos danos causados à vítima.
A partir dessa
mobilização internacional, o Brasil precisou se posicionar diante das demandas
do público feminino, no caso específico da violência familiar, onde a mulher é
considerada um gênero hiposuficiente, podendo ser exposta a vários tipos de
agressões dentro do seu próprio lar.
Dentre as conquistas
desse período, pode-se citar a prisão em 2002 de Marco Antonio, por crime de
homicídio e a conquista da Lei Maria da Penha, de 07 de agosto de 2006,
decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em homenagem a essa
guerreira, que lutou por 19 anos por uma justiça efetiva.
A lei n° 11.340/02 é de
extrema importância dentro do arcabouço dos direitos humanos, visto que garante
o tratamento devido às vítimas de violência psicológica, patrimonial, moral,
física e sexual, dentro de seu ambiente familiar, com o devido acolhimento
através de Delegacias e Centros Especializados; Casas-abrigo; Defensoria da
mulher; Juizados e Promotorias Especializados, dentre outros instrumentos de muita
valia para o público feminino.
Observa-se ainda dentro
da legislação, em seu art. 3° a valorização efetiva “dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária.”,
a partir de articulações, por exemplo, com a Lei Orgânica
da Assistência Social, o Sistema Único de Saúde e Sistema Único de Segurança
Pública, em busca de oferecer uma ampla assistência à mulher, nesse momento
delicado da vida, conforme o art. 9° da referida lei.
Outro ponto
de muito valor é a possibilidade de medidas protetivas de urgência, definida
por juiz de direito como forma de amenizar os danos sofridos pela vítima,
podendo ocorrer de várias formas, conforme o Art. 22:
I - suspensão da posse ou
restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos
da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 ;
II - afastamento do lar,
domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e
das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e
testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de
preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas
aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou
serviço similar;
V - prestação de
alimentos provisionais ou provisórios.
VI –
comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e (Incluído pela Lei nº
13.984, de 2020)
VII – acompanhamento psicossocial do
agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de
apoio. (Incluído pela Lei nº
13.984, de 2020)
Em relação
aos últimos dois incisos, é possível observar que a Lei n° 13.984 de 2020
trouxe uma inovação considerável em relação ao agressor, dando a oportunidade
de um tratamento reeducativo com equipe multidisciplinar responsável pelo seu
desempenho. Para tanto, é necessário uma valorização dessa temática nos estados
e municípios, a fim de se alocar recursos específicos para o desenvolvimento
dessa estratégia que visa modificar comportamentos, através da conscientização,
visto que um ex-agressor pode se casar novamente e cometer os mesmos erros
absurdos com outra parceira.
Vale
ressaltar que, de acordo com a lei n° 13.641/2018, o descumprimento de tais
medidas protetivas de urgência pode ocasionar a pena de 03 meses a 02 anos ao
agressor, como forma de punição e limitação de tais práticas, a fim de promover
eficácia legal.
Esses são alguns dos
pontos positivos dentro da legislação, no entanto, existem certas dificuldades
para pôr em prática toda essa conquista. De acordo com uma entrevista feita,
pela Revista ÉPOCA, em 20/10/2019 com a tão famosa Maria da Penha, a maioria dos
pequenos municípios do Brasil não é assistido por uma parte dos serviços
especializados apontados na lei 13.340/2002, dificultando a proteção integral
da mulher. Por exemplo, muitos locais não possuem Juizados de Violência
Doméstica e Familiar, gerando lentidão e perda de prioridades dentro das varas
comuns.
Outro dado importante é a
previsão legal de acompanhamento psicossocial, programas de recuperação e
reeducação ao agressor como forma de medida protetiva, mas nada disso pode se
concretizar se não existir um grupo de trabalho específico para essa temática
dentro dos próprios municípios. Atualmente existe o CR homem, em Duque de
Caxias, com uma equipe multidisciplinar para o tratamento adequado aos
agressores, servindo de exemplo para os demais municípios implementarem essa
tão valiosa iniciativa.
Ou seja, é necessário
investimentos em Juizados, Delegacias, Centros Especializados e até mesmo
casas-abrigo, visto que muitas mulheres dependem economicamente dos maridos e
acabam adiando a denúncia por não terem para onde ir. Daí também surge a
necessidade legal de uma articulação com a esfera do trabalho e da educação
para promover a independência dessas mulheres, através de parcerias com cursos
e empresas que promovam a emancipação e, consequentemente, o rompimento do
ciclo da violência.
Esse trabalho foi de
extrema valia para entender a dificuldade da mulher em exercer seus direitos ao
longo do tempo, dando destaque a atuação de Maria da Penha nas conquistas
históricas brasileiras, no que diz respeito à violência doméstica de todos os
tipos.
Vale ressaltar que a lei
11.340/06 não trata apenas das agressões físicas e sexuais, mas também das
psicológicas, morais e patrimoniais, muitas vezes, ignoradas pela sociedade.
Isso é algo muito preocupante, visto que, diversas mulheres vivem por anos
sendo aprisionadas psicológicas acreditando que nunca vão encontrar alguém
melhor do que seus maridos. Além do fato delas se sentirem presas
financeiramente, com filhos e contas para pagar, num ciclo sem fim de
destruição em todos os aspectos da vida.
Muitas delas são
manipuladas emocionalmente pelos seus cônjuges e afastadas de seus familiares,
sem nenhum tipo de convívio social, até mesmo para expressar toda indignação
pelo qual são tratadas. Acorrentadas por uma tortura moral e psicológica elas
se vêem sem auto-estima e forças para denunciarem esses atos truculentos, por
isso é importante a disseminação dessa lei e a sensibilidade das pessoas para
promover encaminhamentos para instrumentos de defesa da mulher, com a maior
rapidez possível, já que, os ataques verbais podem se transformar em físicos,
chegando a um ponto irreversível.
Para que toda essa
proteção seja efetiva, é necessário um maior investimento público na área da
violência doméstica, visto que o Brasil possui a quinta maior taxa de
feminicídio do mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e há
muito para se avançar nessa área.
Logo, o primeiro passo já
foi dado, mas é preciso colocar em prática todos os requisitos da lei, além de
promover melhores conscientizações sobre os tipos de violência e como elas se
desenvolvem no seio familiar, muitas vezes, de forma sorrateira e silenciosa,
mas que no fim causam estragos avassaladores.
A trajetória jurídica internacional
até formação da lei brasileira no caso Maria da Penha. Âmbito Jurídico. 01 de set. de 2010. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-80/a-trajetoria-juridica-internacional-ate-formacao-da-lei-brasileira-no-caso-maria-da-penha/> Acesso em: 30 de out. de 2020;
BRASIL. Lei n° 11.340, de 07 de
agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de
Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 7 de ago. de
2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm> Acesso em: 30 de out. de 2020
BRASIL. Lei n° 13.984, de 03 de abril
de 2020. Altera o art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para estabelecer como
medidas protetivas de urgência frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e
acompanhamento psicossocial. Diário Oficial da União, Brasília, 03 de abril de
2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20192022/2020/Lei/L13984.>
Acesso em: 30 de out. de 2020;
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<https://www.geledes.org.br/taxa-de-feminicidios-no-brasil-e-quinta-maior-do-mundo/?gclid=CjwKCAjwsMzzBRACEiwAx4lLG8GZEifBBGGn2qAvhj0m4uTuZYoG-lXrt09mAf9WbpGeKXJ1QQrjtRoCjgMQAvD_BwE> Acesso em: 30 de out. de 2020.
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